Trecho do ensaio: Nietzsche -“Torna-te quem tu és” de Rafael Trindade
Nietzsche nos dá um conselho: “torna-te quem tu és”. Mas o que isso quer dizer? É preciso, antes de mais nada fugir de todas as interpretações negativistas, derrotistas, niilistas e mecanicistas. Não estamos na frente do oráculo de Delfos lendo: “conhece a ti mesmo”. O tornar-se quem se é passa diretamente por uma análise das forças que constituem o homem e estas forças estão para além de qualquer identidade. Aquele que segue por esta via deve desistir, porque deixa de tentar se superar e faz o contrário do que Nietzsche escreve, caindo invariavelmente no niilismo negativo ou reativo.
“Torna-te quem tu és”, ou seja, aproprie-se das forças que o constituem, tome parte no movimento de auto-superação em curso constantemente dentro de si. O homem é um ponto do universo onde uma enorme quantidade de forças se concentram e se atravessam e por fim transbordam, uma roda que fia por si mesmo. Por isso é preciso afirmar-se de tal modo que se possa ir sempre no limite de si, expandindo-se.
As condições estão dadas, é preciso apenas jogar o jogo, ou talvez jogar-se. Escolher os remédios certos, estar sempre atento para seus próprio estados. Ser o senhor de sua saúde e, talvez mais importante, de sua doença. Para Nietzsche, conhecer a si próprio é cuidar de si próprio, exercitar-se nesta arte. Observar seus sintomas de decadência e elaborar um diagnóstico preciso e prescrever os remédios no hora certa.
Ao homem não resta nada mais para desejar além daquilo que se foi, daquilo que se é e viver de tal forma que o retorno de tudo seja uma bênção. Ser aquele que diz Sim! Que dá, que afirmar a si mesmo e ao mundo. Não esconder-se na sobra de Deus, do Estado, dos pais. Quem sou eu? Ora, é impossível responder porque o tempo todo e preciso tornar-se quem se é! Quem ou o que somos? Impossível!
Quanta verdade suporta um espírito? Pois bem, não somos nada! Somos este caos que se perde nas bordas de si mesmo, um animal na jaula, somos as ondas que batem contra o rochedo, somos o deserto que se esparrama pelo mapa, por onde os ventos cruzam e as dunas se movem. O homem deve aumentar o número de horizontes, conjugar a verdade sempre no plural, criar e povoar desertos. Ele mesmo deve ser o porta-voz da multiplicidade. Porque, afinal, é disto que ele é feito!
Deixar de negar-se, deixar de iludir a si mesmo, deixar de se repartir e se esconder. “Sou fraco, sou um pecador, sou um fracassado, não posso fazer nada”, em que mundo essa afirmação poderia ser nietzschiana? Não! É necessário lutar contra a gravidade, deslizar, dar fluência. O eu é uma ilusão criada pela precária hierarquia interna do corpo. Mas estas forças que nos constituem estão constantemente pressionando, arrastando, empurrando o homem de um lado para o outro. Quem crê no sujeito são os fracos. Tornar-se quem se é significa transvalorar os valores, escolher outros, novos, brilhantes. Encontrar um modo de vida propício ao aumento de suas próprias forças vitais. Quebrar a corrente de escravo, nem mestre nem Deus, não ter mais nenhum senhor além de si mesmo.
Trecho do ensaio: Nietzsche -“Torna-te quem tu és” de Rafael Trindade.