O homem é advertido de tudo; mas não presta atenção. Na realidade, tudo está no nosso ambiente; o segredo é saber ler nele
De modo geral, é uma tolice acreditar em guias pré-fabricados e sistematizados para a interpretação de sonhos, como se pudéssemos comprar um livro de consultas para nele encontrar a tradução de determinado símbolo. Nenhum símbolo onírico pode ser separado da pessoa que o sonhou, assim como não existem interpretações definidas e específicas para qualquer sonho.
Um sonho em nada se parece com uma história contada pela mente consciente. Na nossa vida cotidiana, refletimos sobre o que queremos dizer, escolhemos a melhor maneira de dizê-lo e tentamos dar aos nossos comentários uma coerência lógica. Uma pessoa instruída evitará, por exemplo, o emprego de metáforas complicadas a fim de não tornar confuso o seu ponto de vista. Mas os sonhos têm uma textura diferente. Neles se acumulam imagens que parecem contraditórias e ridículas, perde-se a noção de tempo e as coisas mais banais podem se revestir de um aspecto fascinante ou aterrador.
Parecerá estranho que o inconsciente disponha o seu material de modo tão diferente dos esquemas aparentemente disciplinados que imprimimos nos nossos pensamentos, quando acordados. No entanto, quem quer que se detenha na recordação de um sonho perceberá esse contraste, contraste este que é uma das principais razões para que os sonhos sejam tão difícil compreensão para leigos. Como não fazem sentido nos termos da nossa experiência diurna normal, há uma tendência ou para ignorá-los ou para nos confessarmos desorientados e confusos.
Talvez esse ponto se torne mais claro se tomarmos consciência de que as ideias de que nos ocupamos na vida diurna e aparentemente disciplinada não são tão precisas como queremos crer. Ao contrário, o seu sentido e a importância emocional que tem para nós tornam-se cada vez mais vagos à medida que as examinamos de mais perto. A razão para isso é que qualquer coisas que tenhamos ouvido ou experimentado pode tornar-se subliminar — isto é, passar ao inconsciente que dá novo colorido à ideia cada vez que é convocada. Nossas impressões conscientes, de fato, assumem rapidamente um elemento de sentido de sentido inconsciente que tem para nós uma significação psíquica, apesar de não estarmos conscientes da existência desse fato subliminar ou da maneira pela qual ambos ampliam e perturbam o sentido convencional.
Evidentemente esses meios-tons psíquicos diferem de pessoa para pessoa. Cada um de nós recebe noções gerais ou abstratas no contexto particular de nossa mente e, portanto, entende e aplica tais noções também de maneira particular e individual. Quando numa conversa, uso palavras como “Estado”, “dinheiro”, “saúde”, ou “sociedade”, parto de pressuposto de que os que me escutam dão a esses termos mais ou menos a mesma significação que eu. Mas a expressão “mais ou menos” é o que importa aqui. Cada palavra tem um sentido ligeiramente diferente para cada pessoa, mesmo para os de um mesmo nível cultural. O motivo dessas variações é que uma noção geral é recebida num contexto individual, particular e, portanto, também compreendida e aplicada de um modo individual, particular e, portanto, também compreendida e aplicada de um modo individual, particular. As diferenças de sentido são naturalmente maiores quando as pessoas tem experiencias sociais, politicas, religiosas ou psicológicas de níveis diferentes.
Em suma, todo conceito da nossa consciência tem suas associações psíquicas próprias. Quando tais associações variam de intensidade (segundo a importância relativa desse conceito em relação à nossa personalidade total, ou segundo a natureza de outras ideias e mesmo complexos com os quais esteja associado no nosso inconsciente), elas são capazes de mudar o caráter “normal” daquele conceito. O conceito pode mesmo tornar-se uma coisa totalmente diferente à medida que é impulsionado abaixo do nível de consciência.
Esses aspectos subliminares de tudo o que nos acontece parecem ter pouca importância na nossa vida diária. Mas na análise dos sonhos, em que os psicólogos se ocupam de expressões do inconsciente, são aspectos relevantes, por se constituem nas raízes quase invisíveis dos nossos pensamentos conscientes. É por isso que objetos ou ideias comuns podem adquirir uma significação psíquica tão poderosa que acordamos seriamente perturbados, apesar de termos sonhado coisas absolutamente banais — com uma porta fechada ou um trem que se perdeu.
Pode-se qualificar esse sonho de simbólico porque não representa uma situação de modo direto e sim indiretamente, por meio de uma metáfora, que a princípio não percebi. Quando isso acontece (como é frequente) não se trata de um “disfarce” proposital do sonho; é resultado, apenas, da nossa dificuldade em captar o conteúdo emocional da linguagem ilustrada. De fato, na vida cotidiana precisamos expor nossas ideias da maneira mais exata possível e aprendemos a rejeitar adornos da fantasia tanto na linguagem como no pensamento — perdendo, assim uma qualidade ainda característica da mentalidade primitiva. A maioria de nós transfere para o inconsciente todas as fantásticas associações psíquicas inerentes a todo objeto e a toda ideia. Já os povos primitivos ainda conservam essas propriedades psíquicas, atribuindo a animais, plantas e pedras poderes que julgamos estranhos e inaceitáveis.
Um habitante da selva africana, por exemplo, que vê a luz do dia um animal noturno pode reconhecer nele um médico ou curandeiro que tenha tomado aquela forma temporariamente. ou considera-lo a alma do mato ou o espirito ancestral de alguém da tribo. Uma árvore pode exercer um papel vital para um primitivo, possuindo aparentemente sua alma e sua voz, e o homem sentirá os seus dois destinos interligados. Existem alguns índios na América do Sul que afirmam ser araras-vermelhas, apesar de saberem muito bem que lhes faltam penas, asas e bicos. Isso porque, no mundo primitivo, as coisas não tem fronteiras tão rígidas como as das nossas sociedades “racionais”.
Para um religioso, principalmente cristão, é difícil aceitar (ou compreender) um índio que se imagina ser uma “arara vermelha”, alegando que isso vai contra a Bíblia sagrada. Isso por que eles pressupõem uma disposição desse índio a ter a Arara como um “ídolo” ou “novo Deus”, em vez de associar a uma identidade psíquica. Porém mesmo dentro da igreja cristã temos o mesmo fenômeno disfarçada de “adoração”, porém com os mesmos elementos, onde os indivíduos se enxergam como “águias”.
Aquilo que os psicólogos chamam de identidade psíquica, ou “participação mística”, foi afastado do nosso mundo objetivo. Mas é exatamente este halo de associações inconscientes que dá ao mundo primitivo aspecto tão colorido e fantástico, e perdemos contato com ele a tal ponto que se o reencontramos nem o reconhecemos. Conosco, esses fenômenos situam-se abaixo do limite da consciência e quando , ocasionalmente, reaparecem, insistimos em dizer que algo de errado está ocorrendo.
A música acima “Prece do Toten” é um exemplo de usar “simbolo animais” como identificação psíquica.
A função geral dos sonhos é tentar restabelecer a nossa balança psicológica, produzindo um material onírico que reconstitui, de maneira sutil, o equilíbrio psíquico total. É o que chamo função complementar (ou compensatória) dos sonhos na nossa constituição psíquica. Explica por que pessoas com ideias poucos realísticas, ou que têm um alto conceito de si mesmas, ou ainda que constroem planos grandiosos em desacordo com a sua verdadeira capacidade, sonham que voam ou que caem. O sonho compensa as deficiências de suas personalidades e, ao mesmo tempo, previne-as dos perigos dos teus rumos atuais. Se os avisos do sonhos são rejeitados, podem ocorrer acidentes reais.
Os sonhos muitas vezes nos advertem; mas tantas outras parece que não o fazem. Portanto, qualquer suposição de que uma mão benevolente nos pode refrear a tempo é duvidosa. Ou, para sermos mais claros, parece que uma forma benéfica por vezes funciona e outras não. A mão misteriosa pode até, ao contrário, indicar um caminho de perdição — os sonhos às vezes provam ser armadilhas, ou pelo menos parece que o são. Em certas ocasiões, comportam-se como o oráculo de Delfos quando este disse ao rei Creso que, se atravessasse o rio Haly, destruiria um grande reino. Só depois de derrotado numa batalha, após ter transposto o rio, é que descobriu que o reino a que o oráculo se referia era o seu próprio.
«O homem é advertido de tudo; mas não presta atenção. Na realidade, tudo está no nosso ambiente; o segredo é saber ler nele.»
Louis-Claude de Saint-Martin
Não podemos nos permitir nenhuma ingenuidade no estudo dos sonhos. Eles têm sua origem em um espírito que não é bem humano, e sim um sopro da natureza — o espírito de uma deusa bela e generosa, mas também cruel. Se quisermos caracterizar esse espirito, vamos nos aproximar bem melhor dele na esfera das mitologias antigas e nas fábulas primitivas das florestas do que na consciência do homem moderno. Não estou querendo negar as grandes conquistas que nos trouxe a evolução da sociedade civilizada, mas tais conquistas realizaram-se à custa de enormes perdas, cuja extensão mal começamos a avaliar.
O homem primitivo era muito mais governado pelos instintos do que seu descendente, o homem “racional”, que aprendeu a “controlar-se”. Em nosso processo de civilização separamos cada vez mais a consciência das camadas instintivas mais profundas da psique humana, e mesmo das bases somáticas do fenômeno psíquico.
Devo acrescentar aqui uma palavra de cautela a respeito da análise de sonhos feita de maneira pouco inteligente ou pouco competente. Existem pessoas cujo estado mental é de tamanho desequilibro que interpretar os seus sonhos pode ser extremamente arriscado. São casos em que uma consciência extremamente unilateral se encontra isolada de uma inconsciência irracional ou “louca” correspondente, e as duas não devem ser postas em contato sem precauções muito específicas.
De modo geral, é uma tolice acreditar em guias pré-fabricados e sistematizados para a interpretação de sonhos, como se pudéssemos comprar um livro de consultas para nele encontrar a tradução de determinado símbolo. Nenhum símbolo onírico pode ser separado da pessoa que o sonhou, assim como não existem interpretações definidas e específicas para qualquer sonho.
A maneira pela qual o inconsciente completa ou compensa o consciente varia tanto de individuo para individuo que é impossível saber até que ponto é aceitável, na verdade, haver uma classificação dos sonhos e seus símbolos.
Devo fazer notar, no entanto, que os símbolos não ocorrem apenas nos sonhos; aparecem em todos os tipos de manifestações psíquicas. Existem pensamentos e sentimentos simbólicos, situações e atos simbólicos. Parece mesmo que, muitas vezes, objetos inanimados cooperam com o inconsciente criando formas simbólicas. Há numerosas históricas verdadeiras de relógios que param no momento em que seu dono morre, como aconteceu com o relógio de pêndulo no palácio de Frederico, o Grande, em Sanssouci, que parou no momento da morte do rei.
É necessário então distinguir um “sinal” de um “simbolo”. O sinal trata de um significado único universal para todos, ou seja, ao ver uma placa de transito “60km” é claro para todos que a mensagem por trás desse sinal é que a velocidade máxima permitida é até 60km/h. Não se permite aqui uma interpretação diferente de individuo para individuo, todos devem respeitar tal sinal. O Mesmo não ocorre com um simbolo, que é construído de acordo com a vivência do individuo e como esse simbolo está sendo construído. Podemos usar como exemplo o símbolo da suástica, que para um hindu significa a felicidade e a boa sorte, porém para um alemão na época da Alemanha nazista representava o partido nazista e todo o seu manifesto, e para um judeu um simbolo de morte e perseguição.
Essa construção de símbolos é feita através de quatro tipos funcionais presente na psique de todos os indivíduos. Esses quatro tipos funcionais correspondem às quatro formas evidentes, pelas quais a consciência se orienta em relação à experiência. A sensação (isto é, percepção sensorial) nos diz que alguma coisa existe; o pensamento mostra-nos o que é esta coisa; o sentimento revela se ela é agradável ou não; e a intuição nos dirá de onde vem e para onde vai.
O leitor deve compreender que esses quatro critérios, que definem tipo de conduta humana, são apenas quatro pontos de vista entre muitos outros, como a força de vontade, o temperamento, a imaginação, a memória, e assim por diante. Nada há de dogmático a respeito deles, mas o seu caráter fundamental recomenda-os para uma classificação. Acho-os particularmente úteis quando preciso explicar as reações dos pais aos filhos, as dos maridos às mulheres e vice-versa. Ajudam-nos também a compreender nossos próprios preconceitos.
Assim, para entender os sonhos de outras pessoas, precisamos sacrificar nossas preferências e reprimir nossos preconceitos. Não é fácil nem confortável fazê-lo, já que implica um esforço moral nem sempre do nosso gosto. Mas se o analista não fizer esse esforço para criticar seus próprios pontos de vista e admitir a sua relatividade, não vai obter a informação correta nem a penetração suficiente, necessárias ao conhecimento da mente do seu paciente.
Referências:
O Homem e seus Símbolos — Carl G. Jung, Editora Harpers Colins