A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás.
Texto adaptado do “Herói das 1000 Faces de Joseph Campbell, capitulo 1: Mito e Sonho”
Conta-se, por exemplo, a história do grande Minos, rei da ilha-império de Creta no período de sua supremacia comercial: diz-se que ele contratou o celebrado artista-artesão Dédalo para conceber e construir um labirinto, no qual esconderia algo de que o palácio tinha vergonha e, ao mesmo tempo, medo. A invenção foi tão engenhosa, que o próprio Dédalo, ao terminá-la, só encontrou o caminho para a saída a duras penas.
“Eu caminhava sozinha pela parte mais antiga de uma grande cidade, através de ruas poeirentas e malcuidadas, com pequenas casas miseráveis”, escreve uma mulher dos nossos dias, descrevendo um dos seus sonhos. “Não sabia onde me encontrava, mas gostei de explorar o ambiente. Escolhi uma rua extremamente poeirenta que levava ao que deveria ter sido um esgoto a céu aberto. Passei por entre fileiras de barracos e descobri um pequeno rio, que corria entre mim e um terreno elevado e firme onde havia uma rua pavimentada. Era um rio bonito e perfeitamente límpido, que fluía sobre a grama. Eu podia ver a grama se movendo sob a água. Não havia como cruzar o rio, e eu fui a uma pequena casa pedir um bote. Um homem que lá se encontrava disse que realmente poderia me ajudar a cruzá-lo. Ele pegou uma pequena caixa de madeira, que colocou à margem do rio, e eu percebi imediatamente que, com essa caixa, podia passar facilmente para o outro lado. Eu sabia que todo o perigo acabara e queria recompensá-lo generosamente.
“Ao refletir a respeito desse sonho, tive uma inconfundível sensação de que não precisava ir aonde fora, podendo ter preferido dar um agradável passeio por ruas pavimentadas. Eu havia ido ao miserável e enlameado local porque preferia a aventura e, tendo começado, deveria prosseguir. . . Quando penso em quão persistentemente segui em frente no sonho, parece-me que eu tinha conhecimento da existência de alguma coisa boa adiante, tal como aquele gracioso rio cheio de grama e a estrada elevada, segura e pavimentada além dele.
Pensando no sonho nesses termos, ele me parece equivaler a uma determinação de nascer ou melhor, de nascer de novo num certo sentido espiritual. Talvez alguns de nós sejam forçados a passar por escuros e traiçoeiros caminhos antes de encontrar o rio da paz ou a elevada estrada a que o espírito se dirige.”
A sonhadora é uma celebrada cantora de ópera e, tal com todos os que preferiram seguir, não as estradas gerais traçadas de forma segura, à luz do dia, mas a aventura do chamado especial e quase inaudível que vem aos ouvidos que se encontram abertos tanto para o exterior como para o interior, teve de descobrir seu próprio caminho, passando por dificuldades que não costumam ser encontradas, “através de ruas poeirentas e malcuidadas”; ela conheceu a noite sombria do espírito, “a selva escura, ao meio da jornada da vida”, de Dante.
A sonhadora conta, na travessia da água, com o benefício de uma pequena caixa de madeira, que assume o lugar, no sonho em questão, do esquife ou ponte, mais comuns. Tratase de um símbolo de seus próprios talento e virtude, especiais, por meio dos quais ela foi conduzida pelas águas do mundo. A sonhadora não nos relatou suas associações, de modo que não sabemos que conteúdos especiais a caixa teria revelado; mas ela é certamente uma variedade da caixa de Pandora essa divina dádiva dos deuses à bela mulher, preenchida com as sementes de todos os problemas e bênçãos da existência, mas que também conta com a virtude que sustenta, a esperança. Através dessa dádiva, a sonhadora passa para o outro lado. E, por meio de um milagre semelhante, o mesmo farão aqueles cujo trabalho é a difícil e perigosa tarefa da autodescoberta e do autodesenvolvimento os que são levados a cruzar o oceano da vida.